28.5.07
A Confirmação do Agravo
Domingo passado referi-me com espanto e indignação ao caso do professor Charrua, suspenso de funções pela Directora Regional de Educação do Norte do Ministério da Educação, por ter proferido afirmações jocosas consideradas insultuosas para a figura do Primeiro-Ministro de Portugal.
Tal facto, já de si insólito, num país que se quer democrático e progressivo, era suficientemente anómalo, mas, tendo a medida repressiva sido aplicada com base numa delação de um colega, que deve ter-se equivocado na sua vocação e no período histórico em que julga viver, torna o acontecimento muito mais revoltante.
Durante a semana foi o assunto bastante comentado, embora as luminárias da Comunicação Social afectas ao Partido Socialista ou independentes, mas com ele concertadas, noutras ocasiões ruidosamente palradoras, aqui escassamente tenham piado.
A responsável pelo Ministério, com ar algo tétrico, de cinismo e de hipocrisia, refugiou-se num falso desconhecimento do problema, evitando qualquer comentário, sob pretexto de não querer influenciar um inquérito que estará em curso.
A rapidez com que o professor foi suspenso, viu o seu computador bloqueado e o correio electrónico devassado dá bem a medida da arrogância e do sentido de impunidade com que já se opera na vasta esfera do Poder do Estado, caído nas mãos de Comissários Políticos.
E aqui é que se deve focalizar a nossa atenção. Não é sem consequência que o Estado, sobretudo, tem sido submetido a sucessivas ondas de assalto, a levas de povoamento, por pessoal partidário, ao longo dos nossos trinta e três anos de festejada democracia.
A coberto do combate ao fascismo moribundo de após a Revolução ou da necessidade de prevenir o seu eventual regresso foi-se saneando ou arredando de posições influentes muita gente válida e colocando, em seu lugar, muita outra de duvidoso valor intelectual e de baixo perfil ético.
As estruturas da Administração Central do Estado, os Ministérios e as Repartições foram sendo sistematicamente semeadas de pessoal de obediência política clara, pronto a servir quem lá o coloca, sendo este o principal motivo da sua colocação ou promoção.
Todos os Partidos têm aqui um currículo desabonatório, mas nenhum como o Partido Socialista revelou uma apetência e uma eficiência tão grande neste desígnio de colonização política das Estruturas do Estado.
Passados trinta e três anos tal prática militante começa a frutificar em pleno. Há quem já se sinta seguro e certo de impunidade para desencadear a sua voracidade de mando.
Admite-se que haja no PS quem se incomode com semelhantes práticas, quem até as reprove e as repugne no interior da sua consciência, mas são provavelmente uma minoria e, para além disso, largamente silenciosa.
Se, no País, estes casos, cada vez frequentes, não forem veementemente denunciados e combatidos, os novos tiranetes terão carreira facilitada e o País há-de depois sofrê-los e amargá-las.
Para nos reanimar, contudo, hoje, no Público, vinha um excelente artigo de António Barreto, a mostrar que desde que este voluntarioso intelectual se distanciou do PS ganhou desmedidamente em lucidez e argúcia, já que inteligente sempre terá sido. Citando livremente o eloquente René Descartes, poderíamos também aqui aduzir que : não basta ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem.
E Barreto, felizmente para ele e para todos nós, há muito tempo que o vem fazendo, em favor da clarividência e da verdade, mesmo que sinta a este respeito a eterna perplexidade, como a de Pilatos ante a alegação de Jesus Cristo, no julgamento fatal, conforme o relato do místico Evangelho de João.
Num artigo muito bem construído, de argumentos oportunos, Barreto caracteriza de forma magistral o actual Poder Socialista, no Governo, no Partido e no Estado.
Invoca Barreto as mais conhecidas celebridades socialistas, estranhamente cegas, surdas e mudas em face das malfeitorias presentes, em face do deserto de ideias sobre o País, para lá das loas às novas tecnologias que não hão-de germinar no caldo de cultura de incompetência apadrinhada que campeia por todo o lado, na ignorância remunerada e no mérito desprezado, como se vê dominante, por regra.
Com um Ensino ineficiente, desacreditado, desprestigiado, que já penalizou várias gerações de Portugueses, avizinham-se tempos difíceis.
Continuará o Povo Português a assistir a este deprimente quadro, sem reacção adequada? Continuará a confiar em quem repetidamente o engana? Resignar-se-á ele a todas as vilanias, sob o pretexto de que não há alternativa política ?
As alternativas forjam-se no confronto das ideias e dos projectos, desde que os haja, desde que eles sejam dados a conhecer ao Povo.
É preciso crer na racionalidade da espécie humana e agir em consequência. É preciso suscitar o aparecimento de gente de bem, nova e velha, mas não comprometida com a presente desordem ética.
É preciso buscar gente que ame o País, que tenha espírito de missão, real e não palavroso, e exigir-lhe coerência nas ideias, consequência na acção. Pode ser difícil reunir gente com estes requisitos, mas sem esse esforço, não se vislumbra saída para a situação.
AV_Lisboa, 27 de Maio de 2007
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Tal facto, já de si insólito, num país que se quer democrático e progressivo, era suficientemente anómalo, mas, tendo a medida repressiva sido aplicada com base numa delação de um colega, que deve ter-se equivocado na sua vocação e no período histórico em que julga viver, torna o acontecimento muito mais revoltante.
Durante a semana foi o assunto bastante comentado, embora as luminárias da Comunicação Social afectas ao Partido Socialista ou independentes, mas com ele concertadas, noutras ocasiões ruidosamente palradoras, aqui escassamente tenham piado.
A responsável pelo Ministério, com ar algo tétrico, de cinismo e de hipocrisia, refugiou-se num falso desconhecimento do problema, evitando qualquer comentário, sob pretexto de não querer influenciar um inquérito que estará em curso.
A rapidez com que o professor foi suspenso, viu o seu computador bloqueado e o correio electrónico devassado dá bem a medida da arrogância e do sentido de impunidade com que já se opera na vasta esfera do Poder do Estado, caído nas mãos de Comissários Políticos.
E aqui é que se deve focalizar a nossa atenção. Não é sem consequência que o Estado, sobretudo, tem sido submetido a sucessivas ondas de assalto, a levas de povoamento, por pessoal partidário, ao longo dos nossos trinta e três anos de festejada democracia.
A coberto do combate ao fascismo moribundo de após a Revolução ou da necessidade de prevenir o seu eventual regresso foi-se saneando ou arredando de posições influentes muita gente válida e colocando, em seu lugar, muita outra de duvidoso valor intelectual e de baixo perfil ético.
As estruturas da Administração Central do Estado, os Ministérios e as Repartições foram sendo sistematicamente semeadas de pessoal de obediência política clara, pronto a servir quem lá o coloca, sendo este o principal motivo da sua colocação ou promoção.
Todos os Partidos têm aqui um currículo desabonatório, mas nenhum como o Partido Socialista revelou uma apetência e uma eficiência tão grande neste desígnio de colonização política das Estruturas do Estado.
Passados trinta e três anos tal prática militante começa a frutificar em pleno. Há quem já se sinta seguro e certo de impunidade para desencadear a sua voracidade de mando.
Admite-se que haja no PS quem se incomode com semelhantes práticas, quem até as reprove e as repugne no interior da sua consciência, mas são provavelmente uma minoria e, para além disso, largamente silenciosa.
Se, no País, estes casos, cada vez frequentes, não forem veementemente denunciados e combatidos, os novos tiranetes terão carreira facilitada e o País há-de depois sofrê-los e amargá-las.
Para nos reanimar, contudo, hoje, no Público, vinha um excelente artigo de António Barreto, a mostrar que desde que este voluntarioso intelectual se distanciou do PS ganhou desmedidamente em lucidez e argúcia, já que inteligente sempre terá sido. Citando livremente o eloquente René Descartes, poderíamos também aqui aduzir que : não basta ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem.
E Barreto, felizmente para ele e para todos nós, há muito tempo que o vem fazendo, em favor da clarividência e da verdade, mesmo que sinta a este respeito a eterna perplexidade, como a de Pilatos ante a alegação de Jesus Cristo, no julgamento fatal, conforme o relato do místico Evangelho de João.
Num artigo muito bem construído, de argumentos oportunos, Barreto caracteriza de forma magistral o actual Poder Socialista, no Governo, no Partido e no Estado.
Invoca Barreto as mais conhecidas celebridades socialistas, estranhamente cegas, surdas e mudas em face das malfeitorias presentes, em face do deserto de ideias sobre o País, para lá das loas às novas tecnologias que não hão-de germinar no caldo de cultura de incompetência apadrinhada que campeia por todo o lado, na ignorância remunerada e no mérito desprezado, como se vê dominante, por regra.
Com um Ensino ineficiente, desacreditado, desprestigiado, que já penalizou várias gerações de Portugueses, avizinham-se tempos difíceis.
Continuará o Povo Português a assistir a este deprimente quadro, sem reacção adequada? Continuará a confiar em quem repetidamente o engana? Resignar-se-á ele a todas as vilanias, sob o pretexto de que não há alternativa política ?
As alternativas forjam-se no confronto das ideias e dos projectos, desde que os haja, desde que eles sejam dados a conhecer ao Povo.
É preciso crer na racionalidade da espécie humana e agir em consequência. É preciso suscitar o aparecimento de gente de bem, nova e velha, mas não comprometida com a presente desordem ética.
É preciso buscar gente que ame o País, que tenha espírito de missão, real e não palavroso, e exigir-lhe coerência nas ideias, consequência na acção. Pode ser difícil reunir gente com estes requisitos, mas sem esse esforço, não se vislumbra saída para a situação.
AV_Lisboa, 27 de Maio de 2007
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Para que mais gente possa apreciar a excelência do artigo de António Barreto, aqui o transcrevo na íntegra :
« ENFIM, SÓ!
Público, 27.05.2007 - António Barreto - Retrato da Semana
A saída de António Costa para a Câmara de Lisboa pode ser interpretada de muitas maneiras. Mas, se as intenções podem ser interessantes, os resultados é que contam.
Entre estes, está o facto de o candidato à autarquia se ter afastado do governo e do partido, o que deixa Sócrates praticamente sozinho à frente de um e de outro. Único senhor a bordo tem um mestre e uma inspiração. Com Guterres, o primeiro-ministro aprendeu a ambição pessoal, mas, contra ele, percebeu que a indecisão pode ser fatal.
A ponto de, com zelo, se exceder: prefere decidir mal, mas rapidamente, do que adiar para estudar. Em Cavaco, colheu o desdém pelo seu partido. Com os dois e com a sua própria intuição autoritária, compreendeu que se pode governar sem políticos.
Onde estão os políticos socialistas?
Aqueles que conhecemos, cujas ideias pesaram alguma coisa e que são responsáveis pelo seu passado?
Uns saneados, outros afastados. Uns reformaram-se da política, outros foram encostados. Uns foram promovidos ao céu, outros mudaram de profissão. Uns foram viajar, outros ganhar dinheiro. Uns desapareceram sem deixar vestígios, outros estão empregados nas empresas que dependem do Governo.
Manuel Alegre resiste, mas já não conta. Medeiros Ferreira ensina e escreve. Jaime Gama preside sem poderes. João Cravinho emigrou. Jorge Coelho está a milhas de distância e vai dizendo, sem convicção, que o socialismo ainda existe. António Vitorino, eterno desejado, exerce a sua profissão. Almeida Santos justifica tudo. Freitas do Amaral reformou-se. Alberto Martins apagou-se. Mário Soares ocupa-se da globalização. Carlos César limitou-se definitivamente aos Açores. João Soares espera. Helena Roseta foi à sua vida independente.
Os grandes autarcas do partido estão reduzidos à insignificância. O Grupo Parlamentar parece um jardim-escola sedado. Os sindicalistas quase não existem. O actual pensamento dos socialistas resume-se a uma lengalenga pragmática, justificativa e repetitiva sobre a inevitabilidade do governo e da luta contra o défice.
O ideário contemporâneo dos socialistas portugueses é mais silencioso do que a meditação budista. Ainda por cima, Sócrates percebeu depressa que nunca o sentimento público esteve, como hoje, tão adverso e tão farto da política e dos políticos. Sem hesitar, apanhou a onda.
Desengane-se quem pensa que as gafes dos ministros incomodam Sócrates. Não mais do que picadas de mosquito. As gafes entretêm a opinião, mobilizam a imprensa, distraem a oposição e ocupam o Parlamento. Mas nada de essencial está em causa. Os disparates de Manuel Pinho fazem rir toda a gente. As tontarias e a prestidigitação estatística de Mário Lino são pura diversão.
E não se pense que a irrelevância da maior parte dos ministros, que nada têm a dizer para além dos seus assuntos técnicos, perturba o primeiro-ministro. É assim que ele os quer, como se fossem directores-gerais. Só o problema da Universidade Independente e dos seus diplomas o incomodou realmente.
Mas tratava-se, politicamente, de questão menor. Percebeu que as suas fragilidades podiam ser expostas e que nem tudo estava sob controlo. Mas nada de semelhante se repetirá.
O estilo de Sócrates consolida-se. Autoritário. Crispado. Despótico. Irritado. Enervado. Detesta ser contrariado. Não admite perguntas que não estavam previstas. Pretende saber, sobre as pessoas, o que há para saber. Deseja ter tudo quanto vive sob controlo.
Tem os seus sermões preparados todos os dias. Só ele faz política, ajudado por uma máquina poderosa de recolha de informações, de manipulação da imprensa, de propaganda e de encenação.
O verdadeiro Sócrates está presente nos novos bilhetes de identidade, nas tentativas de Augusto Santos Silva de tutelar a imprensa livre, na teimosia descabelada de Mário Lino, na concentração das polícias sob seu mando e no processo que o Ministério da Educação abriu contra um funcionário que se exprimiu em privado.
O estilo de Sócrates está vivo, por inteiro, no ambiente que se vive, feito já de medo e apreensão. A austeridade administrativa e orçamental ameaça a tranquilidade de cidadãos que sentem que a sua liberdade de expressão pode ser onerosa. A imprensa sabe o que tem de pagar para aceder à informação. As empresas conhecem as iras do Governo e fazem as contas ao que têm de fazer para ter acesso aos fundos e às autorizações.
Sem partido que o incomode, sem ministros politicamente competentes e sem oposição à altura, Sócrates trata de si. Rodeado de adjuntos dispostos a tudo e com a benevolência de alguns interesses económicos, Sócrates governa.
Com uma maioria dócil, uma oposição desorientada e um rol de secretários de Estado zelosos, ocupa eficientemente, como nunca nas últimas décadas, a Administração Pública e os cargos dirigentes do Estado. Nomeia e saneia a bel-prazer. Há quem diga que o vamos ter durante mais uns anos. É possível.
Mas não é boa notícia. É sinal da impotência da oposição. De incompetência da sociedade. De fraqueza das organizações. E da falta de carinho dos portugueses pela liberdade.»
« ENFIM, SÓ!
Público, 27.05.2007 - António Barreto - Retrato da Semana
A saída de António Costa para a Câmara de Lisboa pode ser interpretada de muitas maneiras. Mas, se as intenções podem ser interessantes, os resultados é que contam.
Entre estes, está o facto de o candidato à autarquia se ter afastado do governo e do partido, o que deixa Sócrates praticamente sozinho à frente de um e de outro. Único senhor a bordo tem um mestre e uma inspiração. Com Guterres, o primeiro-ministro aprendeu a ambição pessoal, mas, contra ele, percebeu que a indecisão pode ser fatal.
A ponto de, com zelo, se exceder: prefere decidir mal, mas rapidamente, do que adiar para estudar. Em Cavaco, colheu o desdém pelo seu partido. Com os dois e com a sua própria intuição autoritária, compreendeu que se pode governar sem políticos.
Onde estão os políticos socialistas?
Aqueles que conhecemos, cujas ideias pesaram alguma coisa e que são responsáveis pelo seu passado?
Uns saneados, outros afastados. Uns reformaram-se da política, outros foram encostados. Uns foram promovidos ao céu, outros mudaram de profissão. Uns foram viajar, outros ganhar dinheiro. Uns desapareceram sem deixar vestígios, outros estão empregados nas empresas que dependem do Governo.
Manuel Alegre resiste, mas já não conta. Medeiros Ferreira ensina e escreve. Jaime Gama preside sem poderes. João Cravinho emigrou. Jorge Coelho está a milhas de distância e vai dizendo, sem convicção, que o socialismo ainda existe. António Vitorino, eterno desejado, exerce a sua profissão. Almeida Santos justifica tudo. Freitas do Amaral reformou-se. Alberto Martins apagou-se. Mário Soares ocupa-se da globalização. Carlos César limitou-se definitivamente aos Açores. João Soares espera. Helena Roseta foi à sua vida independente.
Os grandes autarcas do partido estão reduzidos à insignificância. O Grupo Parlamentar parece um jardim-escola sedado. Os sindicalistas quase não existem. O actual pensamento dos socialistas resume-se a uma lengalenga pragmática, justificativa e repetitiva sobre a inevitabilidade do governo e da luta contra o défice.
O ideário contemporâneo dos socialistas portugueses é mais silencioso do que a meditação budista. Ainda por cima, Sócrates percebeu depressa que nunca o sentimento público esteve, como hoje, tão adverso e tão farto da política e dos políticos. Sem hesitar, apanhou a onda.
Desengane-se quem pensa que as gafes dos ministros incomodam Sócrates. Não mais do que picadas de mosquito. As gafes entretêm a opinião, mobilizam a imprensa, distraem a oposição e ocupam o Parlamento. Mas nada de essencial está em causa. Os disparates de Manuel Pinho fazem rir toda a gente. As tontarias e a prestidigitação estatística de Mário Lino são pura diversão.
E não se pense que a irrelevância da maior parte dos ministros, que nada têm a dizer para além dos seus assuntos técnicos, perturba o primeiro-ministro. É assim que ele os quer, como se fossem directores-gerais. Só o problema da Universidade Independente e dos seus diplomas o incomodou realmente.
Mas tratava-se, politicamente, de questão menor. Percebeu que as suas fragilidades podiam ser expostas e que nem tudo estava sob controlo. Mas nada de semelhante se repetirá.
O estilo de Sócrates consolida-se. Autoritário. Crispado. Despótico. Irritado. Enervado. Detesta ser contrariado. Não admite perguntas que não estavam previstas. Pretende saber, sobre as pessoas, o que há para saber. Deseja ter tudo quanto vive sob controlo.
Tem os seus sermões preparados todos os dias. Só ele faz política, ajudado por uma máquina poderosa de recolha de informações, de manipulação da imprensa, de propaganda e de encenação.
O verdadeiro Sócrates está presente nos novos bilhetes de identidade, nas tentativas de Augusto Santos Silva de tutelar a imprensa livre, na teimosia descabelada de Mário Lino, na concentração das polícias sob seu mando e no processo que o Ministério da Educação abriu contra um funcionário que se exprimiu em privado.
O estilo de Sócrates está vivo, por inteiro, no ambiente que se vive, feito já de medo e apreensão. A austeridade administrativa e orçamental ameaça a tranquilidade de cidadãos que sentem que a sua liberdade de expressão pode ser onerosa. A imprensa sabe o que tem de pagar para aceder à informação. As empresas conhecem as iras do Governo e fazem as contas ao que têm de fazer para ter acesso aos fundos e às autorizações.
Sem partido que o incomode, sem ministros politicamente competentes e sem oposição à altura, Sócrates trata de si. Rodeado de adjuntos dispostos a tudo e com a benevolência de alguns interesses económicos, Sócrates governa.
Com uma maioria dócil, uma oposição desorientada e um rol de secretários de Estado zelosos, ocupa eficientemente, como nunca nas últimas décadas, a Administração Pública e os cargos dirigentes do Estado. Nomeia e saneia a bel-prazer. Há quem diga que o vamos ter durante mais uns anos. É possível.
Mas não é boa notícia. É sinal da impotência da oposição. De incompetência da sociedade. De fraqueza das organizações. E da falta de carinho dos portugueses pela liberdade.»
20.5.07
Insólita Intimidação
Neste último sábado, 19 de Maio de 2007, o jornal Público trazia uma notícia algo invulgar, nos tempos democráticos, que deve merecer a nossa atenção e consequente discussão.
Segundo a notícia, um professor de inglês terá feito um comentário jocoso a respeito da licenciatura do Primeiro-Ministro José Sócrates, na presença de um representante do Ministério da Educação.
Esse comentário terá sido considerado insultuoso da figura do Primeiro-Ministro, pela Directora Regional da Educação do Norte, que resolveu suspender o professor do seu serviço habitual, ao mesmo tempo que lhe instaurou um processo disciplinar, com participação da ocorrência ao Ministério.
Se esta história se confirmar, conforme veio relatada no Público, advertência que hoje em dia se terá de fazer com a maior ponderação, dada a leviandade que grassa no meio jornalístico actual, em Portugal como no resto do mundo, o caso assume gravidade de tomo.
Coisas que imaginávamos decorrentes da prática democrática, como a expressão da livre opinião dos cidadãos, podem começar a ficar à mercê do entendimento caprichoso de quem localmente exerce qualquer forma de Poder.
Custa-me acreditar que de tão insignificante episódio, como a reprodução de uma qualquer piada relacionada como a acidentada licenciatura de José Sócrates, resulte dano para a vida do professor.
Difícil seria ignorar o carácter inaudito da vida estudantil de um Ministro em funções, num Governo da Nação, nos anos de glória do facundo e benemérito Guterres, à procura de uma licenciatura salvífica, que lhe abrisse caminho a futuros Mestrados, MBA e edulcorados Doutoramentos, que certamente já estariam sob a sua mira científico-cultural, ainda que tais títulos académicos, ao que parece, não se destinassem a sustentar o exercício ulterior de nenhuma actividade profissional, mas apenas a aureolar o seu mui cioso currículo político.
Tenha ou não consequências disciplinares para o infausto professor a referência jocosa ao controverso currículo académico do Primeiro-Ministro, absolutamente heterodoxo ou, se preferirem, de uma forma mais benigna, absolutamente original, sobretudo em figuras de estado, tanto quanto seja do conhecimento público.
Admite-se que haja outros casos de vida académica tão desconcertantes como o de Sócrates entre a família política hodierna, tal a promiscuidade a que se chegou entre universidades e poder político, mais acentuada, naturalmente com a profusão do Ensino Universitário Particular, nascido à sombra daquele, com o qual, de resto, contraiu enorme cumplicidade.
Esta novidade dos currículos académicos ultra-rápidos, dos turbo-professores, das múltiplas funções destes em diversas universidades, acumulando cargos e prebendas, com cruzamentos políticos vários também, para garantir a correspondente cobertura, é mais uma das maravilhas do presente regime democrático.
Para coroar tais maravilhas, assegurando a sua indisputabilidade, nada melhor que ir criando alguns mecanismos de intimidação. Previnem-se assim os potenciais recalcitrantes, lembrando-lhes as inconveniências do seu exercício crítico. Claro que, neste particular, não se pensa na causa da sua crítica :
Quem mandou Sócrates meter-se a licenciar-se na Universidade Independente, em Engenharia Civil, sob a orientação pedagógica do Professor Morais?
Quem lhe passou as famigeradas cartas de curso, os diversos certificados de datas trocadas, com notas diferentes nas mesmas cadeiras ?
Quem meteu o tal Professor Morais à frente de Organismos do Estado, nos quais logo se viu envolvido em irregularidades, algumas graves de que ainda correm processos nos Tribunais ?
Depois disto, será temerário tecer comentários, jocosos ou sérios, sob pena de se ter de enfrentar a férula repressiva do Poder ? E chamaremos, então, democrático a este Poder, ainda que socialista de nome ?
AV_Lisboa, 20 de Maio de 2007
10.5.07
Visão – inquietante – do Nosso Futuro Cultural
Um pouco por acaso, hoje à noite, ao regressar do cinema, aonde tinha ido ver um filme francês – La Môme – sobre a vida de Edith Piaf, que valeu mais pela meia dúzia de canções conhecidas daquela exímia cantora que pelo resto, eis que dei comigo, ao ligar a TV, com uma coisa chamada semi-final do 52º Festival da Eurovisão.
Coisa tão deplorável de ver, que cabe dizer: se isto é o futuro musical da Europa, bem podemos ir guardando os discos de há 30 e mais anos, porque o que aí vem, em matéria de música ligeira, é mesmo de fugir.
Para começar, quase todos os representantes dos países europeus (?) cantavam em inglês e os poucos que o faziam nas línguas naturais, usavam um estilo, na música, na melodia (?), na coreografia, etc., no mais puro estilo americano, de absoluto mau gosto, numa macaqueação absurda do pior espectáculo musical que se fabrica nos EUA.
Que quererá isto dizer? O fim da identidade cultural europeia, como a conhecíamos, nas suas diferentes especificidades ? A vitória irreversível do estilo musical americano ? O fim do uso dos idiomas europeus nas canções ?
Haja quem responda.
Uma coisa, porém, parece inequívoca: a atracção do abismo do mau gosto vence actualmente em toda a linha. Podem alguns argumentar que não existe essa coisa do bom ou do mau gosto, mas tão-só o gosto dominante de uma dada época, que traduz a preferência estética das massas populares, as chamadas maiorias, na música, como noutra qualquer forma de arte.
Seja o que for que tal signifique, o que é certo é que nunca como hoje, nas diferentes formas de arte, um só estilo, de influência anglo-saxónica, mas sobretudo norte-americana, assumiu tão esmagador domínio na cena mundial.
A Europa, apesar de todos os seus vetustos e conceituados pergaminhos, vacila e cai ante o império do estilo americano: na forma de fazer ciência, na tecnologia, na arte, na economia, na gestão, como na política, praticamente em tudo, a Europa se americaniza.
Adeus, velha e elegante Europa. Com o rock, acabaste por adquirir tudo o mais: Mcdonalds, cinema abrutalhado, empregos precários, segurança social mínima, ignorância e boçalidade a rodos e toda a demais fancaria, para grande pesar dos americanos excelsos que durante séculos prezaram a diferença da elegância e do requinte europeus.
Será por isto que os povos europeus anseavam? Terão definitivamente abandonado as suas culturas, as suas originalidades e para sempre fixado como seus ideais tudo aquilo que vêem os americanos fazer?
Sentir-se-ão com isto felizes aqueles que neste continente se batem pela bio-diversidade no mundo animal e vegetal e já no plano das culturas dos nossos diferentes povos não se importam com o predomínio de apenas um tipo de cultura, marcadamente de cunho americano ?
Hoje, com este destrambelhado Festival da Eurovisão, julgo ter vislumbrado uma prefiguração de algo feio, reles e estúpido que a decantada modernidade se prepara, mais depressa do que nos damos conta, para nos enfiar pelas goelas abaixo.
Queira Deus me tenha equivocado. Por uma vez, saudaria tal engano.
AV_Lisboa, 10 de Maio de 2007
Coisa tão deplorável de ver, que cabe dizer: se isto é o futuro musical da Europa, bem podemos ir guardando os discos de há 30 e mais anos, porque o que aí vem, em matéria de música ligeira, é mesmo de fugir.
Para começar, quase todos os representantes dos países europeus (?) cantavam em inglês e os poucos que o faziam nas línguas naturais, usavam um estilo, na música, na melodia (?), na coreografia, etc., no mais puro estilo americano, de absoluto mau gosto, numa macaqueação absurda do pior espectáculo musical que se fabrica nos EUA.
Que quererá isto dizer? O fim da identidade cultural europeia, como a conhecíamos, nas suas diferentes especificidades ? A vitória irreversível do estilo musical americano ? O fim do uso dos idiomas europeus nas canções ?
Haja quem responda.
Uma coisa, porém, parece inequívoca: a atracção do abismo do mau gosto vence actualmente em toda a linha. Podem alguns argumentar que não existe essa coisa do bom ou do mau gosto, mas tão-só o gosto dominante de uma dada época, que traduz a preferência estética das massas populares, as chamadas maiorias, na música, como noutra qualquer forma de arte.
Seja o que for que tal signifique, o que é certo é que nunca como hoje, nas diferentes formas de arte, um só estilo, de influência anglo-saxónica, mas sobretudo norte-americana, assumiu tão esmagador domínio na cena mundial.
A Europa, apesar de todos os seus vetustos e conceituados pergaminhos, vacila e cai ante o império do estilo americano: na forma de fazer ciência, na tecnologia, na arte, na economia, na gestão, como na política, praticamente em tudo, a Europa se americaniza.
Adeus, velha e elegante Europa. Com o rock, acabaste por adquirir tudo o mais: Mcdonalds, cinema abrutalhado, empregos precários, segurança social mínima, ignorância e boçalidade a rodos e toda a demais fancaria, para grande pesar dos americanos excelsos que durante séculos prezaram a diferença da elegância e do requinte europeus.
Será por isto que os povos europeus anseavam? Terão definitivamente abandonado as suas culturas, as suas originalidades e para sempre fixado como seus ideais tudo aquilo que vêem os americanos fazer?
Sentir-se-ão com isto felizes aqueles que neste continente se batem pela bio-diversidade no mundo animal e vegetal e já no plano das culturas dos nossos diferentes povos não se importam com o predomínio de apenas um tipo de cultura, marcadamente de cunho americano ?
Hoje, com este destrambelhado Festival da Eurovisão, julgo ter vislumbrado uma prefiguração de algo feio, reles e estúpido que a decantada modernidade se prepara, mais depressa do que nos damos conta, para nos enfiar pelas goelas abaixo.
Queira Deus me tenha equivocado. Por uma vez, saudaria tal engano.
AV_Lisboa, 10 de Maio de 2007
4.5.07
Continuando com António José Saraiva
Se há prosa inteligente na Língua Portuguesa que convém ler, reler e meditar, a de António José Saraiva é, sem dúvida, uma delas.
Como já por várias ocasiões tenho referido, os seus artigos, políticos sobretudo, reunidos na colectânea «Filhos de Saturno» são de uma meridiana clareza, plenos de originalidade e de argúcia crítica, que tornam a sua leitura um verdadeiro festim de inteligente volúpia, como raro nos acontece fruir em textos de índole política.
Um deles, bastante mais dilatado do que o habitual, intitulado «A Seta e o Anel», escrito por AJS para uma palestra proferida na SEDES, em 21 de Abril de 1977, representou para mim uma emocionante leitura, considerando-o, ainda hoje, um dos mais inquietantes ensaios que já me foi dado ler sobre a noção de Progresso, sabendo-se como, desde o século XVIII para cá, sobretudo, o termo tem sido quase sempre citado de forma obsessivamente optimista por inúmeros pensadores, ainda que duvidemos da sinceridade de alguns deles, quando abordam esse tão glosado conceito.
Também noutro opúsculo – O que é a Cultura – em que se reuniram, segundo creio, os seus derradeiros escritos de intervenção social, pequenos ensaios sobre o conceito de cultura e outros assuntos correlacionados, AJS nos deixou textos admiráveis em que dissertou, com grande engenho e suprema arte, sobre aqueles temas tão genéricos como difíceis de tratar.
Em homenagem ao exemplo de intelectual, eticamente íntegro e de espírito altivamente independente, como foi António José Saraiva, aqui transcrevo, na totalidade, dois dos seus artigos, ouso dizer, politicamente mais polémicos: «O Salazarismo», de Abril de 1989 e «O 25 de Abril e a História» de Janeiro de 1979, já qui anteriormente transcrito e comentado em 26 de Abril de 2006.
AV_Lisboa, 03 de Maio de 2007
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O Salazarismo
Feita a proclamação do regime liberal em 1834, a guerra civil continuou, porque havia, na verdade, dois liberalismos : o “cartista”, cujo texto era a Carta “doada” pelo Rei, e o democrático ou constitucionalista, que tinha por base a constituição instaurada supostamente pelo povo, isto é, pelos seus autoproclamados representantes ou “deputados”.
Em 1851, houve uma trégua e o poder passou a ser partilhado alternadamente pelos dois partidos : um, o conservador, sob o nome de “regenerador”, o outro, o democrático, sob o nome de “progressista”. Durante esta trégua fez-se a europeização , ou seja, a política de obras públicas, sob a forma de estradas e caminhos-de-ferro.
Entrou no País muito dinheiro pela via de investimentos para financiação de obras públicas, investimentos que vinham de fora e que se pagavam com novos investimentos ou com a expectativa deles. Desta forma se foi acumulando durante décadas uma dívida externa sem que aparecessem novas indústrias ou fontes de pagamento.
Dois homens, dois pilares humanos, davam estabilidade ao sistema : os chefes dos partidos, Anselmo Braamcamp (progressista) e Fontes Pereira de Melo (regenerador). A morte dos dois homens, com breve intervalo, abriu o campo à luta pela sucessão nas chefias, ao apetite de mando, à divisão dos dois partidos em grupúsculos.
A República foi provocada por este estado de coisas, a que só deu uma solução aparente e novamente verbal. Passou a haver um único grande partido em condições de governar, o Partido Republicano Português (PRP), mas debaixo dele agitavam-se incessantemente os grupúsculos que recorriam ao golpe de Estado quando se lhes oferecia a ocasião. Sendo, nesse tempo, metade do país (grosso modo) monárquico, só havia legalmente no Parlamento deputados republicanos.
O golpe militar de 28 de Maio de 1926 tinha atrás de si estas causas de instabilidade que tornavam impossível a efectivação de qualquer plano de governação. A difícil situação financeira herdada da Monarquia teve um momento de alívio expresso num orçamento severo apresentado pelo chefe “democrático” Afonso Costa, mas voltou a agravar-se catastroficamente com a nossa participação na Grande Guerra em ajuda daqueles mesmos que nos tinham humilhado com o “ultimatum” que motivara a insurreição republicana de 31 de Janeiro de 1891.
Este complexo de causas, que a constituição parlamentar de 1911 amplificava favorecendo a acção aos partidos, criou uma situação inextrincável que os militares do 28 de Maio não souberam resolver.
Um dos propósitos do 28 de Maio era “redistribuir as cartas” de forma a pôr termo ao monopólio político do PRP que viera substituir o monopólio dos dois partidos alternantes, que vigorara na Monarquia (Regeneradores e Progressistas). Mas, em primeiro lugar, era necessário acudir à urgência financeira, problema cada vez mais preocupante. Foi o equilíbrio do Orçamento, nas vésperas da crise mundial de 1930, que granjeou o prestígio de Oliveira Salazar. Mas fica por resolver o grande problema político, que se pode resumir em dois pontos :
1- Pôr fim ao monopólio do partido único (o PRP), que existia, de facto, de modo a permitir, por via legal e normal, outras opções partidárias.
2- Tornar viável a participação na vida política da massa monárquica, ilegal como partido e que se manifestava de maneiras ilegais e conspirativas.
Resolvendo estas duas questões, afastavam-se as duas principais causas da instabilidade política do País. Pelo menos assim se julgava.
A nova constituição plebiscitada em 1933 propunha-se resolvê-los. Segundo a nova constituição (a de 1933), a soberania não residia no “povo”, entidade quantitativa e informe, mas sim “em a Nação” e a Nação era uma entidade orgânica, com os seus órgãos próprios, competentes cada um para resolver os seus problemas.
Por isso, o regime instituído pela Constituição de 1933 foi chamado de “democracia orgânica”, designação que o próprio Salazar não inventou, pois que Oliveira Martins, na geração anterior, a tinha aplicado a um sistema semelhante, que só existiu no papel (opúsculo “As Eleições”, 1872). O que Salazar contestava, como Oliveira Martins já o fizera, era a capacidade de o sistema “um homem-um voto” para resolver os problemas concretos do País. O que a sua Constituição (a de 1933) pretendia era o voto qualificado e representativo das estruturas ou órgãos do País.
A instituição da União Nacional , como ele próprio sustentou, não era a criação de mais um partido, mas uma tentativa para resolver um difícil problema que já resumimos em dois pontos : primeiramente integrar na vida política nacional a massa monárquica sem afugentar os republicanos; em segundo lugar, retirar ao PRP o monopólio político que oficialmente detinha. Na intenção, a União Nacional era uma organização que devia permitir a todos os Portugueses participarem na vida política independentemente dos Partidos, e não um “partido único”, como os factos vieram a fazê-lo.
Salazar foi, sem dúvida, um dos homens mais notáveis da História de Portugal e possuía uma qualidade que os homens notáveis nem sempre possuem: a recta intenção.
A sua Constituição é, sem dúvida, lógica e geometricamente exemplar. Ele não foi o único a constatar os defeitos – não só na prática, mas também na teoria – do sistema político vigente antes de 1926. Era um sistema que se baseava num método que nas ciências humanas conduz sempre inevitavelmente a soluções erradas: o método quantitativo. A qualidade das soluções nunca depende da quantidade dos votos.
Mas o sistema constitucional óptimo, ou antes, melhor, só existe subjectivamente; coincide com a vontade do criador. E é evidente que, por isso mesmo, é impraticável. Uma Constituição Ideal é sempre uma utopia. Enquanto Salazar foi vivo disse eu (AJS) duas ou três coisas que me pareciam evidentes. Uma, era sobre o regime corporativo: pensava eu (AJS) que as corporações eram uma instituição medieval, incompatível com o século XX.
Estava enganado, porque vemos, cada vez mais os problemas serem resolvidos por métodos corporativos, por acordos entre patrões e operários ou por greves, também entre corporações. Por negociação entre entidades cada vez mais poderosas; “lobbies ou alianças sindicais. O problema agrava-se com as concentrações maciças de indivíduos e de capital.
Outra parece-me cada vez mais evidente e, por isso mesmo, põe problemas cada vez mais graves. A abolição dos Partidos Políticos supõe a criação de instrumentos que impeçam o seu aparecimento e crescimento, isto é : uma censura dos meios de comunicação e uma polícia que mantenha dentro de certos limites a faculdade de associação e de reunião. A repressão é inevitável num regime de liberdade vigiada, mesmo que seja para impedir o Partido Único.
O problema só tem uma solução no plano da subjectividade, ou seja, no plano das intenções do legislador. Se o árbitro é bem intencionado, não precisa de regras obrigatórias, mas há um profundo ditado popular que diz que das intenções só Deus sabe. Além disso, é óbvio que as regras constitucionais estabelecidas por um legislador estão destinadas pela força das coisas a ser aplicadas por outro ou outros. Por isso, as constituições precisam de ser feitas por homens medianos, intelectual e moralmente, e não podem ser entregues a homens rigorosos e muito competentes.
Era essa, possivelmente, a grande virtude e o grande defeito de Salazar : o rigor talvez excessivo consigo mesmo e com os outros. Quem lê os seus “ Discursos e Notas” fica subjugado pela limpidez e concisão de estilo, a mais perfeita e cativante prosa doutrinária que existe em Língua Portuguesa, atravessada por um ritmo afectivo poderoso.
Por esse lado, a prosa de Salazar merece um lugar de relevo na História da Literatura Portuguesa ( e só considerações políticas até agora a têm arredado do lugar que lhe compete). É uma prosa que guarda a lucidez da grande prosa do século XVII, e donde é banida toda a nebulosidade, toda a distracção, toda a frouxidão, tudo o que frequentemente torna obscura ou despropositadamente ofuscante a prosa dos nossos doutrinadores.
Resolvendo estas duas questões, afastavam-se as duas principais causas da instabilidade política do País. Pelo menos assim se julgava.
A nova constituição plebiscitada em 1933 propunha-se resolvê-los. Segundo a nova constituição (a de 1933), a soberania não residia no “povo”, entidade quantitativa e informe, mas sim “em a Nação” e a Nação era uma entidade orgânica, com os seus órgãos próprios, competentes cada um para resolver os seus problemas.
Por isso, o regime instituído pela Constituição de 1933 foi chamado de “democracia orgânica”, designação que o próprio Salazar não inventou, pois que Oliveira Martins, na geração anterior, a tinha aplicado a um sistema semelhante, que só existiu no papel (opúsculo “As Eleições”, 1872). O que Salazar contestava, como Oliveira Martins já o fizera, era a capacidade de o sistema “um homem-um voto” para resolver os problemas concretos do País. O que a sua Constituição (a de 1933) pretendia era o voto qualificado e representativo das estruturas ou órgãos do País.
A instituição da União Nacional , como ele próprio sustentou, não era a criação de mais um partido, mas uma tentativa para resolver um difícil problema que já resumimos em dois pontos : primeiramente integrar na vida política nacional a massa monárquica sem afugentar os republicanos; em segundo lugar, retirar ao PRP o monopólio político que oficialmente detinha. Na intenção, a União Nacional era uma organização que devia permitir a todos os Portugueses participarem na vida política independentemente dos Partidos, e não um “partido único”, como os factos vieram a fazê-lo.
Salazar foi, sem dúvida, um dos homens mais notáveis da História de Portugal e possuía uma qualidade que os homens notáveis nem sempre possuem: a recta intenção.
A sua Constituição é, sem dúvida, lógica e geometricamente exemplar. Ele não foi o único a constatar os defeitos – não só na prática, mas também na teoria – do sistema político vigente antes de 1926. Era um sistema que se baseava num método que nas ciências humanas conduz sempre inevitavelmente a soluções erradas: o método quantitativo. A qualidade das soluções nunca depende da quantidade dos votos.
Mas o sistema constitucional óptimo, ou antes, melhor, só existe subjectivamente; coincide com a vontade do criador. E é evidente que, por isso mesmo, é impraticável. Uma Constituição Ideal é sempre uma utopia. Enquanto Salazar foi vivo disse eu (AJS) duas ou três coisas que me pareciam evidentes. Uma, era sobre o regime corporativo: pensava eu (AJS) que as corporações eram uma instituição medieval, incompatível com o século XX.
Estava enganado, porque vemos, cada vez mais os problemas serem resolvidos por métodos corporativos, por acordos entre patrões e operários ou por greves, também entre corporações. Por negociação entre entidades cada vez mais poderosas; “lobbies ou alianças sindicais. O problema agrava-se com as concentrações maciças de indivíduos e de capital.
Outra parece-me cada vez mais evidente e, por isso mesmo, põe problemas cada vez mais graves. A abolição dos Partidos Políticos supõe a criação de instrumentos que impeçam o seu aparecimento e crescimento, isto é : uma censura dos meios de comunicação e uma polícia que mantenha dentro de certos limites a faculdade de associação e de reunião. A repressão é inevitável num regime de liberdade vigiada, mesmo que seja para impedir o Partido Único.
O problema só tem uma solução no plano da subjectividade, ou seja, no plano das intenções do legislador. Se o árbitro é bem intencionado, não precisa de regras obrigatórias, mas há um profundo ditado popular que diz que das intenções só Deus sabe. Além disso, é óbvio que as regras constitucionais estabelecidas por um legislador estão destinadas pela força das coisas a ser aplicadas por outro ou outros. Por isso, as constituições precisam de ser feitas por homens medianos, intelectual e moralmente, e não podem ser entregues a homens rigorosos e muito competentes.
Era essa, possivelmente, a grande virtude e o grande defeito de Salazar : o rigor talvez excessivo consigo mesmo e com os outros. Quem lê os seus “ Discursos e Notas” fica subjugado pela limpidez e concisão de estilo, a mais perfeita e cativante prosa doutrinária que existe em Língua Portuguesa, atravessada por um ritmo afectivo poderoso.
Por esse lado, a prosa de Salazar merece um lugar de relevo na História da Literatura Portuguesa ( e só considerações políticas até agora a têm arredado do lugar que lhe compete). É uma prosa que guarda a lucidez da grande prosa do século XVII, e donde é banida toda a nebulosidade, toda a distracção, toda a frouxidão, tudo o que frequentemente torna obscura ou despropositadamente ofuscante a prosa dos nossos doutrinadores.
Essa prosa vem das melhores fontes do século XVII, o século lúcido entre todos, o século de Pascal. Do mesmo século herdou Salazar a sua utopia política. A sua utopia política foi o que se chama o “despotismo esclarecido”, de que é exemplo em Portugal o reinado de D. José, com o Ministro Pombal. Salazar não disputou o Governo, não adulou eleitores. Recebeu o Governo de quem o podia dar, isto é, do soberano.
Nesse momento, o soberano era o poder militar saído de uma sublevação triunfante. Salazar tornou-se seu Ministro, como Pombal se tornou Ministro de D. José. O poder militar teve sucessivos protagonistas – Carmona, Craveiro Lopes, Almirante Tomaz – formalmente legítimos, e Salazar, recebendo deles a investidura, considerava-se um Primeiro-Ministro legítimo. “ A soberania é um facto, não é um direito” – escreveu uma vez, numa carta, Alexandre Herculano. É um facto a soberania hereditária dos Reis, como a soberania revolucionária das Juntas Militares.
Deu-se, graças a este sistema, congeminado e executado por Salazar, uma coincidência entre a Lei e o Legislador que, só ele sabia a intenção da Lei e, para além disso, possuía qualidades de administrador miraculosamente raras, junto a uma igualmente rara integridade.
Conseguiram-se coisas, hoje inconcebíveis, como a neutralidade na II Grande Guerra e, passando aos pormenores, a realização de uma extraordinária exposição internacional, a melhor exposição que se fez em Portugal, inaugurada conforme o programa, em 1940, apesar de a guerra ter rebentado no Verão anterior, da ocupação de Paris pelos alemães, de estar em curso o bloqueio comercial à Inglaterra, etc. Refiro-me à Primeira Exposição do Mundo Português.
Conseguiu-se também, pela primeira vez desde Pombal, pôr fim à tutela inglesa, que fora confirmada com sangue, na 1ª Guerra Mundial. E hoje vemos, com uma dura clareza, como o período da nossa história a que cabe o nome de Salazarismo foi o último em que merecemos o nome de Nação independente. Agora, em plena “democracia” e sendo o Povo “soberano”, resta-nos ser uma reserva de eucaliptos para uso de uma obscura entidade económica que tem o pseudónimo de CEE.
( António José Saraiva in “Expresso” de 22 de Abril de 1989 )
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O 25 DE ABRIL E A HISTÓRIA
Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril.
Na perspectiva de então, havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo regime. Quanto à descolonização, havia trunfos para a realizar em boa ordem e com vantagem para ambas as partes: o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro «Portugal e o Futuro», do general Spínola, que tivera a aceitação nacional, e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada, ordenada e honrosa.
Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir.
Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas. Uma foi que o PCP, infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo, nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato, que fizesse cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram mostrar.
Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tripas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu. Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários».
E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização, num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do exército, para que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil é a retirada; exige, em grau elevadíssimo, o moral da tropa. Neste caso, a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos, e em qualquer caso destituídos de sentimento nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas aos que desorganizaram, conscientemente, a cadeia de comando, aos que lançaram palavras de ordem que, nas circunstâncias do momento, eram puramente criminosas.
Isto quanto à descolonização, que, na realidade, não houve. O outro problema era o da liquidação do regime deposto.
Os políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães, que vinha derrubar um governo, que, segundo eles, era um pântano de corrupção e que se mantinha graças ao terror policial: impunha-se, portanto, fazer o seu julgamento, determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas, segundo um critério rigoroso e valores definidos.
Quanto aos escândalos da corrupção, de que tanto se falava, o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial. Em qualquer caso, já hoje não é possível fazer a condenação dos escândalos do antigo regime, porque outros talvez piores os vieram desculpar.
Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total. Durante longos meses, esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS. Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido e estabelecia um número surpreendentemente longo de atenuantes, que se aplicavam praticamente a todos os casos. A maior parte dos julgados saiu em liberdade. O público não chegou a saber, claramente, as responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da suspeita de conluio com os acusados, antes e depois do 25 de Abril.
Havia, também, um malefício imputado ao antigo regímen, que era o dos crimes de guerra, cometidos nas operações militares do Ultramar. Sobre isto, lançou-se um véu de esquecimento. As Forças Armadas Portuguesas foram alvo de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se transformaram em pensamentos recalcados.
Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regímen, como não se fez a descolonização. Uns homens substituiram outros, quando os mesmos não substituiram os mesmos; a um regímen monopartidário substituiu-se um regímen pluripartidário. Mas não se estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente. Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de retórica: «a longa noite fascista».
Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas, em Portugal, nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres da anterior, mais a vergonha da deserção.
E, com este começo, tudo foi possível depois, como num exército em debandada: vieram as passagens administrativas, sob capa de democratização do ensino; vieram «saneamentos» oportunistas e iníquios, a substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares, resultado da traição do comando, no campo das operações; vieram os contrabandistas confessos e os falsificadores de moeda em lugares de confiança política ou administrativa; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; veio o controlo da Imprensa e da Radiotelevisão, pelo Governo e pelos partidos, depois de se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio «honesto» de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.
Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encobre uma realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa história uma página ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só, todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa história e que nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de nação. Está escrita e não pode ser arrancada do livro.
É preciso lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente.
Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente. »
( António José Saraiva in Diário de Notícias_26-01-1979 )
Fim de transcrição dos artigos de AJS
Nesse momento, o soberano era o poder militar saído de uma sublevação triunfante. Salazar tornou-se seu Ministro, como Pombal se tornou Ministro de D. José. O poder militar teve sucessivos protagonistas – Carmona, Craveiro Lopes, Almirante Tomaz – formalmente legítimos, e Salazar, recebendo deles a investidura, considerava-se um Primeiro-Ministro legítimo. “ A soberania é um facto, não é um direito” – escreveu uma vez, numa carta, Alexandre Herculano. É um facto a soberania hereditária dos Reis, como a soberania revolucionária das Juntas Militares.
Deu-se, graças a este sistema, congeminado e executado por Salazar, uma coincidência entre a Lei e o Legislador que, só ele sabia a intenção da Lei e, para além disso, possuía qualidades de administrador miraculosamente raras, junto a uma igualmente rara integridade.
Conseguiram-se coisas, hoje inconcebíveis, como a neutralidade na II Grande Guerra e, passando aos pormenores, a realização de uma extraordinária exposição internacional, a melhor exposição que se fez em Portugal, inaugurada conforme o programa, em 1940, apesar de a guerra ter rebentado no Verão anterior, da ocupação de Paris pelos alemães, de estar em curso o bloqueio comercial à Inglaterra, etc. Refiro-me à Primeira Exposição do Mundo Português.
Conseguiu-se também, pela primeira vez desde Pombal, pôr fim à tutela inglesa, que fora confirmada com sangue, na 1ª Guerra Mundial. E hoje vemos, com uma dura clareza, como o período da nossa história a que cabe o nome de Salazarismo foi o último em que merecemos o nome de Nação independente. Agora, em plena “democracia” e sendo o Povo “soberano”, resta-nos ser uma reserva de eucaliptos para uso de uma obscura entidade económica que tem o pseudónimo de CEE.
( António José Saraiva in “Expresso” de 22 de Abril de 1989 )
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O 25 DE ABRIL E A HISTÓRIA
Se alguém quisesse acusar os portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril.
Na perspectiva de então, havia dois problemas principais a resolver com urgência. Eram eles a descolonização e a liquidação do antigo regime. Quanto à descolonização, havia trunfos para a realizar em boa ordem e com vantagem para ambas as partes: o Exército Português não fora batido em campo de batalha; não havia ódio generalizado das populações nativas contra os colonos; os chefes dos movimentos de guerrilha eram em grande parte homens de cultura portuguesa; havia uma doutrina, a exposta no livro «Portugal e o Futuro», do general Spínola, que tivera a aceitação nacional, e poderia servir de ponto de partida para uma base maleável de negociações. As possibilidades eram ou um acordo entre as duas partes, ou, no caso de este não se concretizar, uma retirada em boa ordem, isto é, escalonada, ordenada e honrosa.
Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir.
Pelo que agora se conhece, este comportamento inesquecível e inqualificável deve-se a duas causas. Uma foi que o PCP, infiltrado no Exército, não estava interessado num acordo, nem numa retirada em ordem, mas num colapso imediato, que fizesse cair esta parte da África na zona soviética. O essencial era não dar tempo de resposta às potências ocidentais. De facto, o que aconteceu nas antigas colónias portuguesas insere-se na estratégia africana da URSS, como os acontecimentos subsequentes vieram mostrar.
Outra causa foi a desintegração da hierarquia militar a que a insurreição dos capitães deu início e que o MFA explorou ao máximo, quer por cálculo partidário, quer por demagogia, para recrutar adeptos no interior das Forças Armadas. Era natural que os capitães quisessem voltar depressa para casa. Os agentes do MFA exploraram e deram cobertura ideológica a esse instinto das tripas, justificaram honrosamente a cobardia que se lhe seguiu. Um bando de lebres espantadas recebeu o nome respeitável de «revolucionários».
E nisso foram ajudados por homens políticos altamente responsáveis, que lançaram palavras de ordem de capitulação e desmobilização, num momento em que era indispensável manter a coesão e o moral do exército, para que a retirada em ordem ou o acordo fossem possíveis. A operação militar mais difícil é a retirada; exige, em grau elevadíssimo, o moral da tropa. Neste caso, a tropa foi atraiçoada pelo seu próprio comando e por um certo número de políticos inconscientes ou fanáticos, e em qualquer caso destituídos de sentimento nacional. Não é ao soldadinho que se deve imputar esta fuga vergonhosa, mas aos que desorganizaram, conscientemente, a cadeia de comando, aos que lançaram palavras de ordem que, nas circunstâncias do momento, eram puramente criminosas.
Isto quanto à descolonização, que, na realidade, não houve. O outro problema era o da liquidação do regime deposto.
Os políticos aceitaram e aplaudiram a insurreição dos capitães, que vinha derrubar um governo, que, segundo eles, era um pântano de corrupção e que se mantinha graças ao terror policial: impunha-se, portanto, fazer o seu julgamento, determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. Julgamento dentro das normas justas, segundo um critério rigoroso e valores definidos.
Quanto aos escândalos da corrupção, de que tanto se falava, o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial. Em qualquer caso, já hoje não é possível fazer a condenação dos escândalos do antigo regime, porque outros talvez piores os vieram desculpar.
Quanto ao terror policial, estabeleceu-se uma confusão total. Durante longos meses, esperou-se uma lei que permitisse levar a tribunal a PIDE-DGS. Ela chegou, enfim, quando uma parte dos eventuais acusados tinha desaparecido e estabelecia um número surpreendentemente longo de atenuantes, que se aplicavam praticamente a todos os casos. A maior parte dos julgados saiu em liberdade. O público não chegou a saber, claramente, as responsabilidades que cabiam a cada um. Nem os acusadores ficaram livres da suspeita de conluio com os acusados, antes e depois do 25 de Abril.
Havia, também, um malefício imputado ao antigo regímen, que era o dos crimes de guerra, cometidos nas operações militares do Ultramar. Sobre isto, lançou-se um véu de esquecimento. As Forças Armadas Portuguesas foram alvo de suspeitas que ninguém quis esclarecer e que, por isso, se transformaram em pensamentos recalcados.
Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regímen, como não se fez a descolonização. Uns homens substituiram outros, quando os mesmos não substituiram os mesmos; a um regímen monopartidário substituiu-se um regímen pluripartidário. Mas não se estabeleceu uma fronteira entre o passado e o presente. Os nossos homens públicos contentaram-se com uma figura de retórica: «a longa noite fascista».
Com estes começos e fundamentos, falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão, foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas, em Portugal, nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres da anterior, mais a vergonha da deserção.
E, com este começo, tudo foi possível depois, como num exército em debandada: vieram as passagens administrativas, sob capa de democratização do ensino; vieram «saneamentos» oportunistas e iníquios, a substituir o julgamento das responsabilidades; vieram os bandos militares, resultado da traição do comando, no campo das operações; vieram os contrabandistas confessos e os falsificadores de moeda em lugares de confiança política ou administrativa; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; veio o controlo da Imprensa e da Radiotelevisão, pelo Governo e pelos partidos, depois de se ter declarado a abolição da censura; veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de esclarecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio «honesto» de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco.
Ao contrário das esperanças de alguns, não se começou vida nova, mas rasgou-se um véu que encobre uma realidade insuportável. Para começar, escreveu-se na nossa história uma página ignominiosa de cobardia e irresponsabilidade, página que, se não for resgatada, anula, por si só, todo o heroísmo e altura moral que possa ter havido noutros momentos da nossa história e que nos classifica como um bando de rufias indignos do nome de nação. Está escrita e não pode ser arrancada do livro.
É preciso lê-la com lágrimas de raiva e tirar dela as conclusões, por mais que nos custe. Começa por aí o nosso resgate. Portugal está hipotecado por esse débito moral, enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente.
Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente. »
( António José Saraiva in Diário de Notícias_26-01-1979 )
Fim de transcrição dos artigos de AJS
1.5.07
Releituras Amargas
Relendo António José Saraiva, por épocas políticas tão desgraçadas, como as que estamos vivendo, fui dar com um artigo seu, intitulado «O Salazarismo», escrito para o Expresso, em Abril de 1989, há 18 anos, por conseguinte.
Recordo-me da perturbação que senti, quando na altura o li. Se ele não tivesse sido saído da pena de AJS, decerto não o haveria de tomar tão a sério. Mas, vindo dele, intelectual perspicaz, corajoso, espírito rebelde, indomável, como poucos e homem traquejado pelas cruezas da vida, profundo conhecedor do mundo e do homens, ele mesmo antiga vítima da política repressiva de Salazar, aquelas contundentes asserções causaram-me uma impressão duradoura.
O artigo polémico, como muitos outros que AJS escreveu, antes e depois do 25 de Abril, contém algumas passagens que merecem transcrição literal, para que se perceba bem o seu carácter inesperado, justamente porque emanadas de quem foi por Salazar afastado do Ensino oficial, politicamente perseguido, de tal forma que acabou por ter de se exilar em França.
Neste país, sobretudo, mas também na Holanda, exerceu a sua vocação de investigador de temas da Cultura Portuguesa, em acção profícua de que nos deixou notáveis documentos, com bibliografia importante, de fino recorte literário, sempre reveladora de pensamento original, de grande agudeza de interpretação dos nossos principais factos histórico-culturais.
Nos artigos políticos que abundantemente produziu, em particular depois de 1974, essas mesmas características de pensador original, ousado e independente, se haveriam de profusamente manifestar, na Comunicação Social em que regularmente colaborava.
Ainda o ano passado aqui coloquei um dos seus mais famosos textos «O 25 de Abril e a História», publicado no Diário de Notícias de 26 de Janeiro de 1979, que causou imenso furor. Ainda hoje nos custa lê-lo, pela virulência de algumas das suas declarações.
Imagine-se, por um momento, se o DN actual poderia abrigar um artigo de semelhante desenvoltura. Desde logo, pela sua extensão, tal se tornaria impossível, uma vez que os modernos artigos de opinião dos nossos periódicos foram significativamente reduzidos, talvez baseados no pressuposto de que os leitores de hoje não têm tempo, nem frescura mental, para ler textos demasiados intelectuais, absorvidos que andam por entre as palpitações dos colunáveis e a excruciante ansiedade pela condição dos ligamentos de Ronaldo ou do joelho do Simão, que a TV depois se encarrega de explicar ad nauseam, apesar do tempo em televisão ser precioso, como sempre nos inculcaram.
Na altura, sugeri que a Bertrand reeditasse essa luminosa colectânea dos artigos de intervenção social de AJS, que em tempos esta editora publicou sob o título de «Filhos de Saturno». Poucas vezes se terá escrito em tão bom português, com tanta originalidade de pensamento, como nesses preciosos artigos.
Só um espírito tão lúcido, penetrante e original, servido num estilo literário de rara perfeição, como era timbre de AJS, poderia ter produzido tais escritos. São verdadeiras chapadas de inteligência que ali recebemos, fazendo-nos ver claro aquilo que outros, de ordinário, conseguem obscurecer.
Numa época em que se edita de mais, sobre tudo e sobre nada, não se compreende como esse livro não apareça de novo nas bancas, para nos provar que aqui, entre nós, houve quem visse, a quase 30 anos de distância, os males que nos ameaçavam e para onde estávamos todos a ser subrepticiamente conduzidos.
Também no tal texto de AJS sobre «O Salazarismo» colheríamos seguramente idêntica impressão de aturdimento e de estimulação intelectual, na incisão das suas frases, como na clareza do pensamento que as elaborou. Atente-se, por exemplo em dois extractos desse polémico artigo de AJS, O Salazarismo :
«… Segundo a nova constituição (a de 1933), a soberania não residia no “povo”, entidade quantitativa e informe, mas sim “em a Nação” e a Nação era uma entidade orgânica, com os seus órgãos próprios, competentes cada um para resolver os seus problemas. Por isso, o regime instituído pela Constituição de 1933 foi chamado de “democracia orgânica”, designação que o próprio Salazar não inventou, pois que Oliveira Martins, na geração anterior, a tinha aplicado a um sistema semelhante, que só existiu no papel (opúsculo “As Eleições”, 1872). O que Salazar contestava, como Oliveira Martins já o fizera, era a capacidade de o sistema “um homem-um voto” para resolver os problemas concretos do País. O que a sua Constituição (a de 1933) pretendia era o voto qualificado e representativo das estruturas ou órgãos do País.»
…
« … Na intenção, a União Nacional era uma organização que devia permitir a todos os Portugueses participarem na vida política independentemente dos Partidos, e não um “partido único”, como os factos vieram a fazê-lo.
Salazar foi, sem dúvida, um dos homens mais notáveis da História de Portugal e possuía uma qualidade que os homens notáveis nem sempre possuem : a recta intenção.
A sua Constituição é, sem dúvida, lógica e geometricamente exemplar… Mas o sistema constitucional óptimo, ou antes melhor, só existe subjectivamente; coincide com a vontade do criador. E é evidente que, por isso mesmo, é impraticável. Uma Constituição Ideal é sempre uma utopia. Enquanto Salazar foi vivo disse eu (AJS) duas ou três coisas que me pareciam evidentes. Uma, era sobre o regime corporativo: pensava eu (AJS) que as corporações eram uma instituição medieval, incompatível com o século XX. Estava enganado, porque vemos, cada vez mais os problemas serem resolvidos por métodos corporativos, por acordos entre patrões e operários ou por greves, também entre corporações. Por negociação entre entidades cada vez mais poderosas; “lobbies ou alianças sindicais. O problema agrava-se com as concentrações maciças de indivíduos e de capital.
Outra parece-me cada vez mais evidente e por isso mesmo põe problemas cada vez mais graves. A abolição dos Partidos Políticos supõe a criação de instrumentos que impeçam o seu aparecimento e crescimento, isto é : uma censura dos meios de comunicação e uma polícia que mantenha dentro de certos limites a faculdade de associação e de reunião. A repressão é inevitável num regime de liberdade vigiada, mesmo que seja para impedir o Partido Único.
… Por isso, as constituições precisam de ser feitas por homens medianos, intelectual e moralmente, e não podem ser entregues a homens rigorosos e muito competentes.
Era essa, possivelmente, a grande virtude e o grande defeito de Salazar : o rigor talvez excessivo consigo mesmo e com os outros. Quem lê os seus “ Discursos e Notas” fica subjugado pela limpidez e concisão de estilo, a mais perfeita e cativante prosa doutrinária que existe em Língua Portuguesa, atravessada por um ritmo afectivo poderoso. Por esse lado, a prosa de Salazar merece um lugar de relevo na História da Literatura Portuguesa ( e só considerações políticas até agora a têm arredado do lugar que lhe compete). É uma prosa que guarda a lucidez da da grande prosa do século XVII, e donde é banida toda a nebulosidade, toda a distracção, toda a frouxidão, tudo o que frequentemente torna obscura ou despropositadamente ofuscante a prosa dos nossos doutrinadores.
Essa prosa vem das melhores fontes do século XVII, o século lúcido entre todos, o século de Pascal. Do mesmo século herdou Salazar a sua utopia política. A sua utopia política foi o que se chama o “despotismo esclarecido”, de que é exemplo em Portugal o reinado de D. José, com o Ministro Pombla. Salazar não disputou o Governo, não adulou eleitores. Recebeu o Governo de quem o podia dar, isto é, do soberano. Nesse momento, o soberano era o poder militar saído de uma sublevação triunfante. Salazar tornou-se seu Ministro, como Pombal se tornou Ministro de D. José. O poder militar teve sucessivos protagonistas – Carmona, Craveiro Lopes, Almirante Tomaz – formalmente legítimos, e Salazar, recebendo deles a investidura, considerava-se um Primeiro-Ministro legítimo. “ A soberania é um facto, não é um direito” – escreveu uma vez, numa carta, Alexandre Herculano. É um facto a soberania hereditária dos Reis, como a soberania revolucionária das Juntas Militares.
Deu-se, graças a este sistema, congeminado e executado por Salazar, uma coincidência entre a Lei e o Legislador que, só ele, sabia a intenção da Lei e para além disso possuía qualidades de administrador miraculosamente raras, junto a uma igualmente rara integridade. Conseguiram-se coisas hoje inconcebíveis como a neutralidade na II Grande Guerra e, passando aos pormenores, a realização de uma extraordinária exposição internacional, a melhor exposição que se fez em Portugal, inaugurada conforme o programa em 1940, apesar de a guerra ter rebentado no Verão anterior, da ocupação de Paris pelos alemães, de estar em curso o bloqueio comercial à Inglaterra, etc. Refiro-me à Primeira Exposição do Mundo Português. Conseguiu-se também, pela primeira vez desde Pombal, pôr fim à tutela inglesa, que fora confirmada com sangue, na 1ª Guerra Mundial. E hoje vemos, com uma dura clareza, como o período da nossa história a que cabe o nome de Salazarismo foi o último em que merecemos o nome de Nação independente. Agora, em plena “democracia” e sendo o Povo “soberano”, resta-nos ser uma reserva de eucaliptos para uso de uma obscura entidade económica que tem o pseudónimo de CEE.»
In “Expresso”, 22 de Abril de 1989.
Transcrevi, assim, uma parte significativa de mais um dos célebres artigos políticos de AJS, para que nos seja possível apreciar o juízo deste denodado intelectual, dos raros que rejeitaram condecorações oficiais do Estado, a quem não reconhecia capacidade de efectuar distinções de carácter moral entre os seus cidadãos, visceralmente avesso a grupos e capelinhas, autónomo até ao limite, pensando sempre pela sua própria cabeça, na razão ou no erro, e que haveria de morrer vagamente anarquista, naquela figura castiça de velho livre-pensador, acompanhado da sua peculiar boininha preta, símbolo supremo da sua marcada austeridade e indomável rebeldia.
Ninguém poderá duvidar que AJS falou de Salazar como de facto ele o via, no balanço de uma vida de frontal oposição política, que a seu tempo lhe havia custado caro, ao contrário do que aconteceu com certas figuras, hoje estridulamente anti-Salazaristas, mas que, com Salazar e Caetano, fizeram toda uma carreira intelectual, académica ou profissional, sem sobressaltos, na sua maior parte ou razoavelmente acomodados, noutras, sem riscos assumidos, pelos ideais alegadamente comungados.
Outros, de facto, conheceram, com Salazar, maiores agruras e foram mesmo presos e torturados, como os Comunistas. Mas estes, pelo que silenciaram das atrocidades cometidas pelos regimes que eles próprios exaltavam, ficaram com o seu testemunho algo desvalorizado, porque sempre nos deram a entender que nunca hesitariam em repetir os exemplos de crueldade que os seus ícones estrangeiros, Estaline, Mao, Enver Hoxa, Ceaucescu, Kim Il Sung, Fidel, etc., praticavam em nome da defesa de um sistema político-filosófico, que, alguns, até filósofos de nome, como Jean-Paul Sartre, designaram de “doutrina inultrapassável do nosso tempo”.
Bem poderíamos exclamar : Aonde pode levar a cegueira de certas ideologias, mesmo a espíritos brilhantes, que tiveram acesso a todas as fontes de saber, em clima de total liberdade, nos anfiteatros da Sorbonne ou nas aprazíveis esplanadas de Saint Germain-des-Près. Que isto nos sirva de prevenção !
Que falta nos fazem hoje intelectuais como António José Saraiva, Jorge de Sena ou Vergílio Ferreira, para só falar nos que mais impressionaram a minha adolescência e juventude de há trinta e poucos anos.
AV_Lisboa, 01 de Maio de 2007, dia consagrado ao Trabalhador, braçal ou intelectual, que ganha honestamente o seu salário, contribuindo com a sua capacidade e com o seu empenho para o bem comum e, naturalmente, também pessoal e, por isso mesmo, merece ser tratado com todo o respeito e dignidade, por todos os Poderes e por todas as Hierarquias da Terra, por mais importantes ou altivas que estas se nos apresentem.
Numa época em que se edita de mais, sobre tudo e sobre nada, não se compreende como esse livro não apareça de novo nas bancas, para nos provar que aqui, entre nós, houve quem visse, a quase 30 anos de distância, os males que nos ameaçavam e para onde estávamos todos a ser subrepticiamente conduzidos.
Também no tal texto de AJS sobre «O Salazarismo» colheríamos seguramente idêntica impressão de aturdimento e de estimulação intelectual, na incisão das suas frases, como na clareza do pensamento que as elaborou. Atente-se, por exemplo em dois extractos desse polémico artigo de AJS, O Salazarismo :
«… Segundo a nova constituição (a de 1933), a soberania não residia no “povo”, entidade quantitativa e informe, mas sim “em a Nação” e a Nação era uma entidade orgânica, com os seus órgãos próprios, competentes cada um para resolver os seus problemas. Por isso, o regime instituído pela Constituição de 1933 foi chamado de “democracia orgânica”, designação que o próprio Salazar não inventou, pois que Oliveira Martins, na geração anterior, a tinha aplicado a um sistema semelhante, que só existiu no papel (opúsculo “As Eleições”, 1872). O que Salazar contestava, como Oliveira Martins já o fizera, era a capacidade de o sistema “um homem-um voto” para resolver os problemas concretos do País. O que a sua Constituição (a de 1933) pretendia era o voto qualificado e representativo das estruturas ou órgãos do País.»
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« … Na intenção, a União Nacional era uma organização que devia permitir a todos os Portugueses participarem na vida política independentemente dos Partidos, e não um “partido único”, como os factos vieram a fazê-lo.
Salazar foi, sem dúvida, um dos homens mais notáveis da História de Portugal e possuía uma qualidade que os homens notáveis nem sempre possuem : a recta intenção.
A sua Constituição é, sem dúvida, lógica e geometricamente exemplar… Mas o sistema constitucional óptimo, ou antes melhor, só existe subjectivamente; coincide com a vontade do criador. E é evidente que, por isso mesmo, é impraticável. Uma Constituição Ideal é sempre uma utopia. Enquanto Salazar foi vivo disse eu (AJS) duas ou três coisas que me pareciam evidentes. Uma, era sobre o regime corporativo: pensava eu (AJS) que as corporações eram uma instituição medieval, incompatível com o século XX. Estava enganado, porque vemos, cada vez mais os problemas serem resolvidos por métodos corporativos, por acordos entre patrões e operários ou por greves, também entre corporações. Por negociação entre entidades cada vez mais poderosas; “lobbies ou alianças sindicais. O problema agrava-se com as concentrações maciças de indivíduos e de capital.
Outra parece-me cada vez mais evidente e por isso mesmo põe problemas cada vez mais graves. A abolição dos Partidos Políticos supõe a criação de instrumentos que impeçam o seu aparecimento e crescimento, isto é : uma censura dos meios de comunicação e uma polícia que mantenha dentro de certos limites a faculdade de associação e de reunião. A repressão é inevitável num regime de liberdade vigiada, mesmo que seja para impedir o Partido Único.
… Por isso, as constituições precisam de ser feitas por homens medianos, intelectual e moralmente, e não podem ser entregues a homens rigorosos e muito competentes.
Era essa, possivelmente, a grande virtude e o grande defeito de Salazar : o rigor talvez excessivo consigo mesmo e com os outros. Quem lê os seus “ Discursos e Notas” fica subjugado pela limpidez e concisão de estilo, a mais perfeita e cativante prosa doutrinária que existe em Língua Portuguesa, atravessada por um ritmo afectivo poderoso. Por esse lado, a prosa de Salazar merece um lugar de relevo na História da Literatura Portuguesa ( e só considerações políticas até agora a têm arredado do lugar que lhe compete). É uma prosa que guarda a lucidez da da grande prosa do século XVII, e donde é banida toda a nebulosidade, toda a distracção, toda a frouxidão, tudo o que frequentemente torna obscura ou despropositadamente ofuscante a prosa dos nossos doutrinadores.
Essa prosa vem das melhores fontes do século XVII, o século lúcido entre todos, o século de Pascal. Do mesmo século herdou Salazar a sua utopia política. A sua utopia política foi o que se chama o “despotismo esclarecido”, de que é exemplo em Portugal o reinado de D. José, com o Ministro Pombla. Salazar não disputou o Governo, não adulou eleitores. Recebeu o Governo de quem o podia dar, isto é, do soberano. Nesse momento, o soberano era o poder militar saído de uma sublevação triunfante. Salazar tornou-se seu Ministro, como Pombal se tornou Ministro de D. José. O poder militar teve sucessivos protagonistas – Carmona, Craveiro Lopes, Almirante Tomaz – formalmente legítimos, e Salazar, recebendo deles a investidura, considerava-se um Primeiro-Ministro legítimo. “ A soberania é um facto, não é um direito” – escreveu uma vez, numa carta, Alexandre Herculano. É um facto a soberania hereditária dos Reis, como a soberania revolucionária das Juntas Militares.
Deu-se, graças a este sistema, congeminado e executado por Salazar, uma coincidência entre a Lei e o Legislador que, só ele, sabia a intenção da Lei e para além disso possuía qualidades de administrador miraculosamente raras, junto a uma igualmente rara integridade. Conseguiram-se coisas hoje inconcebíveis como a neutralidade na II Grande Guerra e, passando aos pormenores, a realização de uma extraordinária exposição internacional, a melhor exposição que se fez em Portugal, inaugurada conforme o programa em 1940, apesar de a guerra ter rebentado no Verão anterior, da ocupação de Paris pelos alemães, de estar em curso o bloqueio comercial à Inglaterra, etc. Refiro-me à Primeira Exposição do Mundo Português. Conseguiu-se também, pela primeira vez desde Pombal, pôr fim à tutela inglesa, que fora confirmada com sangue, na 1ª Guerra Mundial. E hoje vemos, com uma dura clareza, como o período da nossa história a que cabe o nome de Salazarismo foi o último em que merecemos o nome de Nação independente. Agora, em plena “democracia” e sendo o Povo “soberano”, resta-nos ser uma reserva de eucaliptos para uso de uma obscura entidade económica que tem o pseudónimo de CEE.»
In “Expresso”, 22 de Abril de 1989.
Transcrevi, assim, uma parte significativa de mais um dos célebres artigos políticos de AJS, para que nos seja possível apreciar o juízo deste denodado intelectual, dos raros que rejeitaram condecorações oficiais do Estado, a quem não reconhecia capacidade de efectuar distinções de carácter moral entre os seus cidadãos, visceralmente avesso a grupos e capelinhas, autónomo até ao limite, pensando sempre pela sua própria cabeça, na razão ou no erro, e que haveria de morrer vagamente anarquista, naquela figura castiça de velho livre-pensador, acompanhado da sua peculiar boininha preta, símbolo supremo da sua marcada austeridade e indomável rebeldia.
Ninguém poderá duvidar que AJS falou de Salazar como de facto ele o via, no balanço de uma vida de frontal oposição política, que a seu tempo lhe havia custado caro, ao contrário do que aconteceu com certas figuras, hoje estridulamente anti-Salazaristas, mas que, com Salazar e Caetano, fizeram toda uma carreira intelectual, académica ou profissional, sem sobressaltos, na sua maior parte ou razoavelmente acomodados, noutras, sem riscos assumidos, pelos ideais alegadamente comungados.
Outros, de facto, conheceram, com Salazar, maiores agruras e foram mesmo presos e torturados, como os Comunistas. Mas estes, pelo que silenciaram das atrocidades cometidas pelos regimes que eles próprios exaltavam, ficaram com o seu testemunho algo desvalorizado, porque sempre nos deram a entender que nunca hesitariam em repetir os exemplos de crueldade que os seus ícones estrangeiros, Estaline, Mao, Enver Hoxa, Ceaucescu, Kim Il Sung, Fidel, etc., praticavam em nome da defesa de um sistema político-filosófico, que, alguns, até filósofos de nome, como Jean-Paul Sartre, designaram de “doutrina inultrapassável do nosso tempo”.
Bem poderíamos exclamar : Aonde pode levar a cegueira de certas ideologias, mesmo a espíritos brilhantes, que tiveram acesso a todas as fontes de saber, em clima de total liberdade, nos anfiteatros da Sorbonne ou nas aprazíveis esplanadas de Saint Germain-des-Près. Que isto nos sirva de prevenção !
Que falta nos fazem hoje intelectuais como António José Saraiva, Jorge de Sena ou Vergílio Ferreira, para só falar nos que mais impressionaram a minha adolescência e juventude de há trinta e poucos anos.
AV_Lisboa, 01 de Maio de 2007, dia consagrado ao Trabalhador, braçal ou intelectual, que ganha honestamente o seu salário, contribuindo com a sua capacidade e com o seu empenho para o bem comum e, naturalmente, também pessoal e, por isso mesmo, merece ser tratado com todo o respeito e dignidade, por todos os Poderes e por todas as Hierarquias da Terra, por mais importantes ou altivas que estas se nos apresentem.